quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A Dona da Flor (Conto)

        Por acaso, agora são quase oito da noite de uma segunda-feira. Faz frio o suficiente para me agasalhar por completo, mas não tanto para puxar as cobertas para cima das pernas. Você sabe, é muito bom cobrir as pernas, protegendo-as do tempo maldoso que aparece de vez em quanto. Ainda mais nessa idade avançada na qual tive a sorte de chegar. Nem todos têm essa sorte, você há de concordar comigo. Um exemplo disso é meu último aniversário, que comemorei completamente só, eu e meus botões. Não houve festa, docinhos, nem presentes. É que não tenho mais familiares ou amigos à minha volta, todos já seguiram seus caminhos particulares após essa vida. Acontece. Quando se chega aos noventa e dois anos, se houver algum resquício de lucidez já uma vitória e tanto. Todos que nós conhecemos vão aos poucos deixando a nossa vida mais solitária ao morrer. Não é a coisa mais agradável do mundo. Disso estou certo.
        No momento, estou sentado à máquina de escrever, redigindo bem calmamente o texto nada brilhante que tem em mãos. Você poderia dizer que computadores são melhores e mais modernos e, para mim, este é o maior problema deles. São modernos demais. Conseguem complicar o próprio ato de descomplicar. Penso que seja a hora de esticar as cobertas sobre minhas pernas. Deixo para depois, acredito que posso terminar de escrever e me deitar em paz.
        Tive amigos, há anos atrás, já não tenho há tantos outros. Isso não quer dizer que eu nunca quis encontrar novos companheiros de vida. Quis. O único problema é que aqueles que conviveram por tantos anos ao meu lado são pessoas que não substituiria e manteria viva cada lembrança do que vivemos. É um pensamento um tanto egoísta, não vou negar. Mas preferi assim e assim continuarei. O único ser humano com quem mantenho contato é uma jovem senhora que vem aqui em casa toda semana ajudar-me com certos afazeres domésticos, como compras e limpeza. Não saio de casa para nada, posso acompanhar o sol da janela que tenho no meu quarto. Mas às vezes gosto de sair para um passeio. Mas, de todos que um dia permearam minha vida, ela foi e sempre continuará sendo a mais importante e a eterna divisora de águas. Costumo classificar esses noventa e dois anos em antes e depois dela.
        Naquela época era bem diferente do que é hoje em dia, como você bem sabe. As garotas eram vigiadas pelos pais e era um exercício de paciência namorá-las. A maioria não podia nem sequer botar o pé na rua, que diriam se arrumassem um namorado e, algumas vezes, nem as mais velhas escapavam do terrível e rígido controle paterno. Mas eu lembro como a conheci, e olha que já tem mais de 70 anos.
        Eu tinha apenas quinze anos de idade e nada na cabeça. Minha mãe havia me pedido um favor e não iria me recusar a atendê-lo. Ela poderia ter feito esse mesmo pedido a um dos meus 5 irmãos mas, na condição de filho caçula, sempre caía pra mim a responsabilidade de alguns pequenos afazeres. No meu grande dia de sorte, era dia de ir na quitanda encontrar algumas batatas para que minha mãe pudesse dar prosseguimento ao almoço. E foi quando estava quase chegando ao meu destino, eu a vi. Ela não era da minha cidade, ou parecia que mudara-se há pouco, pois nunca a tinha visto antes. Inconscientemente, torci para que ela houvesse se mudado para ali. Ela parecia ter a minha idade, ou mais nova. Não vou negar, me apaixonei logo que pus meus olhos nela e seus olhos e cabelos escuros, ali de pé em um jardim grande demais para o tamanho da casa, apoiada com os cotovelos no murinho que separava a calçada da casa.
        Meu primeiro impulso foi sair correndo e chegar à quitanda pela outra rua, mas mantive-me firme. Faltavam apenas alguns metros até a porta verde e a placa azul que era onde eu devia chegar, contudo deveria passar pela casa de onde ela fitava a rua. Sisudo e resoluto como só um adolescente tímido pode ser, continuei andando, sem ousar olhá-la de novo. Me prometi isto. E não cumpri. Quando a olhei de novo, meio enviesado, ela havia sumido! Procurei por todos os lados, e, ainda tenso, a vi retornar ao seu posto mais uma vez. Vi também que ela carregava algo em suas mãos. Quando me aproximei da casa, percebi que, para o meu azar, ela me olhava. A essa altura, já havia perdido o controle dos meus globos oculares e, assim que passei junto a ela, um braço imaculado estava estendido para mim e sua mão me estendia uma flor. A dona da flor se foi há 25 anos. E ainda tenho a flor aqui comigo. Estou olhando para ela agora.